Brasil

Ilona Szabó: “Barroso é corajoso ao propor a regulação da cocaína”

Ilona Szabó: “Barroso é corajoso ao propor a regulação da cocaína”

A pesquisadora de segurança pública elogia o juiz do Supremo e diz que faltam líderes na classe política com ousadia para enfrentar a necessária discussão da descriminalização das drogas

MARCELO MOURA
16/03/2017 - 08h00 - Atualizado 17/03/2017 15h56
Ilana Szabó pesquisadora de segurança pública (Foto: Daryan Dornelles/ÉPOCA)

Nos anos 2000, Ilona Szabó coordenou a campanha do desarmamento. Nos anos seguintes, dedicou-se à questão das drogas no Brasil – no movimento Viva Rio, à frente da Comissão Global de Política sobre Drogas, e, desde 2011, no Instituto Igarapé, centro de estudos de políticas públicas que ajudou a fundar. Agora, que o Supremo Tribunal Federal deve retomar o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas, Ilona lança um livro de ficção sobre o tema – Drogas: as histórias que não te contaram. “Eu, que estou acostumada a falar sobre números, entendi que números não choram”, diz. “São as pessoas que choram. A gente precisa ouvi-las.” Na história de cinco personagens, Ilona apresenta a guerra às drogas pelo olhar de suas vítimas.  No próximo dia 27, o livro será discutido, em São Paulo, pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e César Gaviria (Colômbia) e pelo médico Drauzio Varella, em debate promovido por ÉPOCA, a editora Zahar e a Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). 

>> José Mariano Beltrame: “A segurança pública está ruindo”

ÉPOCA – Em fevereiro, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, disse que a descriminalização da maconha abre caminho para a regulação da cocaína. Qual o peso dessa afirmação?
Ilona Szabó –
O ministro Barroso trouxe algo novo ao debate. Se algumas pessoas acham minha posição progressista, a do ministro foi mais ainda. Ele disse que, depois de o Brasil dar o primeiro passo em relação à maconha, precisará considerar também a regulação do mercado da cocaína. Não há como não concordar que esse é um assunto para uma discussão seriíssima. Acho fantástico um ministro da Suprema Corte saber com clareza que a gente precisa discutir inclusive a regulação do mercado das drogas, como um todo. Se a gente quer diminuir o poder do crime organizado, é natural a gente liberar a maconha, experimentar no mundo real, e avançar para outros modelos. O presidente [da Colômbia, Juan Manuel] Santos foi quem primeiro colocou isso na mesa, no Encontro das Américas de 2012. Ele disse: “A gente precisa falar também da cocaína”.  Aqui no Brasil, é a primeira vez que vejo alguém de peso falando sobre isso, dentro do establishment político. Foi uma fala muito feliz, a do ministro Barroso. Muito corajoso.

ÉPOCA – Como a regulação da maconha e da cocaína poderia enfraquecer as quadrilhas de tráfico de drogas?
Ilona –
A maconha é muito significativa. Estima-se que 80% dos usuários de drogas consumam maconha. Mas a gente também sabe que a cocaína é uma droga que dá um lucro muito grande ao crime organizado.

ÉPOCA – Como a regulação da maconha e da cocaína poderia aumentar os problemas da saúde pública?
Ilona –
A cocaína tem um potencial de dependência maior  que a maconha, mas bem inferior ao que as pessoas imaginam. É relativamente baixo, em comparação com outras drogas. Em uma dezena de países, existe a regulação médica da heroína. É uma política muito bem-sucedida, apesar de a heroína ser uma droga mais forte, do ponto de vista de possibilidade de dependência química, que a cocaína.

ÉPOCA – Algum país já regulou o consumo de cocaína?
Ilona –
Alguns países estão regulando o comércio da maconha. O Uruguai, alguns estados americanos e o Canadá lideram essa via. A Holanda agora vai permitir que os coffee shops produzam, além de vender. A maconha medicinal está no Chile, na Colômbia. Só o Brasil está atrasado nessa discussão. Mas regular a cocaína, como propôs Barroso, ninguém fez ainda. Cerca de 30 países trataram da descriminalização do consumo. 

ÉPOCA – Ao propor a descriminalização do consumo de todas as drogas, no julgamento de um réu flagrado com maconha, o relator Gilmar Mendes não acaba por responder mais do que foi perguntado ao Supremo?
Ilona –
O caso que chegou ao Supremo trata de direito à privacidade. Trata de dizer que você não está cometendo um crime ao usar uma droga ilegal, se não causar dano a ninguém, só a si mesmo. Descriminalizar apenas a droga presente no caso é menos polêmico, por isso os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram apenas pela maconha. Mas é muito complicado você dizer que a privacidade vale para uma droga ilegal e não vale para outra droga ilegal. Tenho esperança de que eles ainda façam um adendo para seguir o relator. O voto de Gilmar Mendes foi o mais coerente com as experiências internacionais. Acho que os Estados Unidos são o único país que criminaliza o consumo de uma droga ilegal e não de outra.

ÉPOCA – Como ministro da Justiça, Alexandre de Moraes se deixou filmar destruindo uma plantação de maconha no Paraguai. Isso sugere que ele, no Supremo, votará contra a descriminalização?
Ilona –
Muita gente tem essa impressão. Eu não. Estou otimista. Acredito que ele separe consumo e tráfico. Tráfico violento, eu também sou contra. Moraes fez carreira como constitucionalista. Na visão de diversos especialistas, não é constitucional criminalizar o porte de drogas para o consumo pessoal. Creio que o novo ministro não vai contradizer os que já votaram.

"O Judiciário avança dentro do que pode. Nem o Legislativo nem o Executivo têm coragem de desfazer distorções"

ÉPOCA – O canabidiol entrou na lista da Anvisa e a Justiça permitiu a algumas famílias o cultivo medicinal da maconha. Qual o impacto dessas decisões na descriminalização da maconha no Brasil?
Ilona –
São pequenas vitórias, mas ainda restritivas, para um grupo de pessoas com uma doença específica. Algumas famílias, com muita luta, conseguiram permissão para importar. Isso é burocrático e elitista, porque você sabe que importação no Brasil é difícil. Tem um custo altíssimo. Não faz sentido. A gente vê o Judiciário, com o Ministério Público e o Supremo, avançando dentro do que pode.

ÉPOCA – Quem não avança?
Ilona –
Na questão da maconha medicinal, bastava à Anvisa baixar uma portaria que regulamente a produção nacional de maconha para fins medicinais. Definir que será assim,  assado. Não precisa de legislação, não tem de passar por lugar nenhum. Existem décadas de estudos feitos, capazes de orientar qualquer decisão. O que a gente não tem são líderes corajosos que assinem esse decreto de regulamentação. Nem o Legislativo nem o Executivo têm coragem de tocar nesses assuntos, atualizar leis, desfazer distorções. A gente vê a falência da segurança pública, e a classe política age como se não fosse com ela.

>> Traficantes cariocas recrutam e armam crianças cada vez mais novas para o crime

ÉPOCA – Como nosso modelo atual de combate às drogas aprofunda a crise da segurança pública?
Ilona –
No ano passado, a Polícia do Rio de Janeiro apreendeu 11 mil pessoas por consumo de drogas e 12 mil por tráfico. Para apreender cada usuário, um policial precisa sair das ruas e passar cerca de três horas, na delegacia, para registrar o caso. Dali, o caso vai para uma denúncia do Ministério Público, que vai para um tribunal especial. Mesmo o consumo sendo um crime que não tem pena de prisão. Enquanto isso, a gente tem 40% dos presos de nossas cadeias esperando julgamento, e não há policial na rua para combater o crime violento. É mau uso de recursos públicos. Sem contar que, daqueles 12 mil presos, quantos são pés de chinelo? A gente fica achando que traficante é tudo igual, mas não é. Tem o cara que embalou a droga. Tem o cara que faz as planilhas do tráfico e nunca pegou em armas. Tem o menino, “vaporzinho”. Essas histórias, a gente tenta trazer no livro. E tem o traficante de que a gente tem medo, o homicida, que eu também quero que seja preso. Mas as pessoas violentas estão soltas. Temos uma das menores taxas de solução de homicídios do planeta. Se estamos de fato preocupados em diminuir a violência, devemos ir atrás do crime violento.

ÉPOCA – Seria o caso de fazer um plebiscito sobre a descriminalização da maconha no Brasil?
Ilona –
Tenho muito medo dessas consultas. Nos Estados Unidos, a discussão sobre maconha medicinal vem desde a epidemia de HIV. São mais de duas décadas de debate. No Brasil, o debate é muito recente. Antes de 2012, era restrito a pequenos grupos. Há muito pouca informação nas escolas. Quando o Brasil fez o referendo das armas, um grupo que tinha dinheiro montou uma bela campanha e, em 20 dias, a gente perdeu. O apoio ao desarmamento era de 80%, quando começou a campanha pela televisão, e caiu para 36%. Além do poder econômico de um ou outro lado, temos outro problema: numa sociedade ainda desinformada, o medo é muito mais mobilizador que a esperança. Aconteceria com as drogas o que aconteceu com as armas. Precisamos de mais dez anos, antes de levar essa questão a uma votação aberta. O custo da criminalização das drogas é alto demais para esperarmos tanto tempo. As mudanças precisam ser explicadas à população, mas feitas independentemente de plebiscito.

>> Por que os planos nacionais de segurança dão errado?

Debates sobre drogas (Foto: ÉPOCA)

Faça a sua inscrição aqui.








especiais